Depressão afeta o cérebro tanto quanto o Alzheimer

Quando não tratada e presente por mais de 10 anos, a doença pode causar inflamações equivalentes às dos males neurodegenerativos, mostra estudo canadense. Para especialistas, a descoberta reforça a necessidade de manter a condição sob controle

A depressão duradoura pode prejudicar fisiologicamente o cérebro. Pesquisa do Centro de Estudos sobre Vícios e Saúde Mental (CAMH) do Canadá sugere que, se não tratada, a doença que persiste por mais de 10 anos provoca inflamações no cérebro equivalentes às detectadas no Alzheimer e em outros tipos de demência. A complicação intoxica áreas cerebrais e é progressiva, também como as doenças neurodegenerativas. Detalhes do trabalho foram divulgados na revista The Lancet Psychiatry.

Jeff Meyer, autor do estudo, e a equipe estudaram 80 voluntários, com idade entre 18 e 75 anos, entre setembro de 2009 e julho de 2017. Os participantes foram divididos em três grupos: 25 tinham depressão por mais de 10 anos, 25 enfrentavam o problema havia menos de uma década, e 30 não tinham o diagnóstico da doença. Os depressivos não estavam sob tratamento havia pelo menos quatro semanas e apresentavam pontuação mínima de 17 na Escala de Avaliação de Depressão de Hamilton. Pela escala, de sete a 17 pontos equivale a depressão leve. Acima de 25 estão os indivíduos gravemente deprimidos.

A inflamação no cérebro foi medida por meio de exame de tomografia por emissão de positrões (TEP), que consegue detectar proteínas translocadoras. Produzidas pelas micróglias, células imunes do cérebro, essas estruturas são ativadas em caso de inflamação. De acordo com os resultados do estudo, o grupo de voluntários com depressão duradoura apresentou até 30% mais inflamação no córtex pré-frontal e no córtex cingulado anterior quando comparado aos que não tinham a doença.

“Nos voluntários com depressão duradoura e que não tiveram muito tratamento com antidepressivo, vimos aumento progressivo da inflamação”, resume Jeff Meyer. Segundo o autor, eles identificaram também semelhanças entre a depressão e outras doenças progressivas que acometem o cérebro, como o Alzheimer e o Parkinson. “Nossos dados sugerem que pessoas com depressão de longa data podem ter uma forma biologicamente diferente de depressão e que precisarão ser tratadas de forma diferente”, complementa.

Condição tóxica 

Para o professor de psiquiatria da Universidade de Brasília (UnB) Raphael Boechat Barros, é importante reforçar que, como mostra a pesquisa canadense, a depressão não é episódica. “O diferencial desse estudo é ter sido feito com pacientes com depressão crônica. A maioria dos testes anteriores estuda a depressão aguda. Esse novo estudo associou o tempo de depressão não tratada com a inflamação, quanto mais tempo, mais inflamação”, explica.

Segundo Barros, nesse caso, há liberação de substâncias neurotóxicas que agridem o cérebro a longo prazo, mesmo que o paciente não sofra com os sintomas. “O estado inflamatório já é um indicativo de que o cérebro não está saudável”, diz. “A depressão, portanto, é uma doença crônica e pode ser indicada como uma doença neurodegenerativa.”

Uma das diferenças entre a depressão episódica e a crônica sãos os sintomas mais evidenciados no segundo caso. Para Fernando Fernandes, médico psiquiatra do Programa de Transtornos do Humor (Gruda) do Instituto de psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), isso pode estar relacionado à inflamação no cérebro. Mas o especialista ressalta que os efeitos afetam outras estruturas do corpo, já que se trata de uma doença multifatorial. “A inflamação é apenas um dos fatores envolvidos, assim como as alterações endócrinas”, ilustra.

De acordo com Fabiano Alves Gomes, médico psiquiatra e coordenador do Ambulatório de Transtornos do Humor do Hospital Universitário de Brasília (HUB), as evidências do estudo confirmam a hipótese de que a depressão é uma doença que ocorre devido a múltiplos processos fisiopatológicos. “Eles incluem alterações mais conhecidas, como disfunções nos neurotransmissores e nos circuitos cerebrais, mas também processos inflamatórios e disfunções imunológicas”, diz.

Reações pessoais 

O psiquiatra Raphael Boechat Barros, porém, ressalta que o tempo para que a depressão cause mudanças cerebrais não é necessariamente 10 anos, como o considerado na pesquisa canadense. “Por ser o primeiro estudo, eles colocaram um prazo aproximado, mas isso depende muito do grau de depressão do paciente. A consequência devido ao tempo varia de pessoa para pessoa”, diz. 

O psiquiatra alerta que é preciso ter consciência de que a depressão, se não tratada, pode resultar em um prejuízo a nível orgânico e não apenas funcional. “A maior parte das evidências vem de estudos que avaliam apenas a estrutura do cérebro ou substâncias detectadas nos exames de sangue. O estudo canadense traz a novidade da utilização de uma técnica que permite avaliar a inflamação diretamente no cérebro de pessoas vivas com depressão e demonstra que o tempo sem tratamento está associado a mais inflamação cerebral”, explica.

Influência no QI dos filhos 

Um novo estudo mostra os impactos da depressão na maternidade. Segundo pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia, em San Diego, nos Estados Unidos, mulheres acometidas pela doença podem se comportar de forma a afetar negativamente o quociente de inteligência (QI) dos filhos, com efeitos sobre o desenvolvimento da cognição até os 16 anos de idade.

Jim Young/Reuters - 7/10/14
Mães sem depressão apoiam mais o desenvolvimento cognitivo dos filhos (foto: Jim Young/Reuters – 7/10/14)

O estudo, divulgado na edição deste mês da revista Child Development, foi realizado a partir de entrevistas feitas com cerca de 900 crianças e as respectivas mães – saudáveis ou deprimidas. Os participantes foram interrogados em intervalos de cinco anos, desde a infância dos filhos até eles completarem 16 anos. Os pesquisadores usaram ainda testes de QI para avaliar as habilidades cognitivas verbais das crianças e dos adolescentes, e exames da condição psíquica das mulheres. Também foram observadas a afetividade e a receptividade das mães para com os filhos e quanto elas ofereciam materiais de estudo adequados a eles.

Os resultados mostraram que mães muito deprimidas investiam menos emocionalmente nos filhos e forneciam poucos recursos de estudo adequados quando comparadas às saudáveis. O comportamento impactou o QI da prole em todas as fases estudadas: de 1 ano aos 16 anos de idade. Por exemplo, a média de pontuação do QI verbal para todas as crianças com 5 anos foi de 7,64, em escala que varia de 1 a 19. No caso das filhas de mães deprimidas, o valor caiu para 7,30. Para as de mães saudáveis, a média subiu para 7,78.

“Apesar de parecerem pequenas, as diferenças no QI são altamente significativas em termos de habilidades verbais e vocabulário das crianças”, ressalta Patricia East, autora do estudo. A cientista destaca que os resultados são importantes para os profissionais de saúde, pois reforçam a importância do diagnóstico precoce, da intervenção e do tratamento da depressão materna. “Fornecer recursos para as mães deprimidas vai ajudá-las a administrar os sintomas de maneira produtiva e garantir que os filhos delas atinjam o pleno potencial”, justifica.

Sem relação de causa e efeito 

Apesar de o estudo canadense apresentar resultados significativos, para especialistas, ele precisa ser aprofundado. O psiquiatra Fernando Fernandes diz que o trabalho lança hipóteses, mas não tira conclusões. “O estudo conseguiu mostrar que a depressão e a inflamação estão relacionadas, mas a relação de causa e efeito não foi confirmada”, explica. Professor de psiquiatria da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Humberto Correa explica que não dá para afirmar que uma seja a causa da outra, pois o estudo faz uma associação entre elas.

O número pequeno de participantes também é um limitador, segundo o psiquiatra Fabiano Alves Gomes, além do fato de que as alterações só foram avaliadas em um momento. “São necessários estudos prospectivos, que acompanhem pacientes com depressão ao longo do tempo, que documentem o período sem tratamento e o uso de medicamentos e que identifiquem a progressão do processo inflamatório cerebral”, sugere.

Gomes ressalta a necessidade de estudos que identifiquem o que vem primeiro, a depressão ou a inflamação, e estratégias que diminuam esses processos inflamatórios e imunológicos. (SS*)

Palavra de especialista
Humberto Correa, professor titular de psiquiatria da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Intervenção deve ser rápida

“É um estudo muito benfeito metodologicamente. É o primeiro a mostrar que a depressão também pode ser uma doença neurodegenerativa, quanto mais tempo o paciente fica sem o tratamento, maior a inflamação cerebral. Os pesquisadores observaram que, a cada década, há um aumento de pelo menos 20% de neurodegeneração. Então, o ponto principal é diagnosticar e tratar o mais rápido possível pacientes com depressão, para que possamos evitar ou diminuir esse processo. O tratamento adequado é importante para evitar recaídas, perda de funcionalidade no trabalho e na rotina e até mesmo o suicídio”.

Fonte: EM

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