Mostra em Inhotim revela caminhos de Abdias Nascimento no exílio
Sortilégio, título da exposição de Abdias em Inhotim, é referência a uma peça dele que critica o mito da democracia racial, destaca elementos do candomblé, denuncia o racismo e combate a demonização dos orixás
Intelectual de múltiplos talentos, Abdias Nascimento havia feito suas primeiras experiências nas artes plásticas meses antes de embarcar para os Estados Unidos, em 1968, para ampliar as trocas entre os movimentos negros brasileiro e norte-americano. O contexto era de resistência contra a ditadura militar aqui, e de luta pelos direitos civis lá, com movimentos como os Panteras Negras em ebulição.
Com o decreto do Ato Institucional nº 5 ,em dezembro daquele ano, Abdias foi forçado a permanecer em exílio, e, a partir daí, mergulhar na pintura como mais uma frente de resgate, exaltação e intercâmbio de tudo o que expressa a ancestralidade africana, partindo da espiritualidade para uma proposta filosófica completa, com um entendimento negro e afrodiaspórico sobre estar no mundo.
“É nos pontos riscados e cantados que nasce minha arte. Aí está a base de tudo. Nas encruzilhadas, nessa coisa que vai e vem, as contradições da vida ganham sentido, e o nosso retrato vai ganhando forma”, definiu Abdias, que se descobriu artista plástico aos 54 anos, na busca por uma linguagem alternativa ao inglês que intermediasse suas trocas com intelectuais e ativistas dos Estados Unidos, Caribe e África, nos 13 anos em que permaneceu exilado.
A história é contada por telas e documentos do Museu de Arte Negra, expostos em Inhotim na mostra Terceiro Ato: Sortilégio, que recebeu apoio da Petrobras, por meio do edital Petrobras Cultural – Múltiplas Expressões, e conta com acervo do Instituto de Pesquisa e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro). Localizado em Brumadinho, Minas Gerais, o Instituto Inhotim é a sede de um dos mais importantes acervos de arte contemporânea do Brasil e considerado o maior museu a céu aberto do mundo.
Quando se iniciou nas artes plásticas, Abdias já era um dos mais importantes intelectuais de seu tempo, além de articulador da mobilização negra e dramaturgo, ator e jornalista de produção extensa, tendo fundado o Teatro Experimental do Negro (1944), o jornal Quilombo: Vida, Problemas e Aspirações do Negro (1948) e o Museu de Arte Negra (1950). Pelo Teatro Experimental do Negro passaram atores e atrizes consagrados, como Ruth de Souza, Léa Garcia e Aguinaldo Camargo.
“Julgávamos que a viagem de Abdias Nascimento aos Estados Unidos fosse oportunidade para ampliar o sucesso do homem de teatro e do escritor sempre brilhante. Que igualmente fosse oportunidade para dilatação de sua campanha em favor do homem de raça negra. Tudo isso está se sucedendo naturalmente. Nenhum espanto. Surpresa mesmo é Abdias artista plástico”, escreveu em O Jornal o crítico de arte Quirino Campofiorito, em 1969, quando tomou conhecimento de que o intelectual havia estreado uma exposição no Harlem, em Nova York.
Durante sua permanência nos Estados Unidos, Abdias lecionou em instituições americanas, como a Universidade de Nova York, onde fundou a cátedra de Culturas Africanas no Novo Mundo e se tornou professor emérito. Também atuou na articulação de debates dos povos africanos em diáspora, organizando e participando de congressos e seminários nas Américas e na África, que tinham entre seus objetivos o enfrentamento do apartheid na África do Sul. Mesmo assim, o brasileiro considerava que reduzir suas trocas com o movimento negro americano ao inglês seria ser colonizado uma segunda vez, e, desse modo, a pintura exerce um papel fundamental, e, nela, os orixás são protagonistas.
Sortilégio
O título da exposição, Sortilégio, faz referência a uma peça escrita por Abdias, em 1951, e montada pela primeira vez apenas em 1957, após perseguição e censura. Crítica do mito da democracia racial, a obra destaca elementos do candomblé, denuncia o racismo e combate a demonização dos orixás, proposta que reaparece nas artes plásticas do intelectual.
Em foto de José Medeiros incluída na exposição, Abdias, que também era ator, empunhava o tridente de Exu no palco, ato em que o protagonista resistia à assimilação e apagamento cultural pela branquitude hegemônica. Orixá da comunicação e das viagens, a entidade é peça central para entender a pintura de Abdias Nascimento, afirma Deri Andrade, curador assistente da exposição Terceiro Ato: Sortilégio, assinada também pela curadora-chefe Júlia Rebouças.
“Abdias trazia essas questões e combatia esse racismo religioso há décadas. Percebe-se isso na produção dele nos anos de 1960, 1970 e 1980, em que ele pensa essas religiões de matriz africana enquanto formas de pensamento, em que se tem cosmologia, psicologia, sociologia. Ele encara essas religiões como uma forma de conhecimento, para além de uma questão religiosa. Ele diz muito isso quando vai reivindicar o papel que as religiões tiveram na construção de uma identidade, de uma história e de uma cultura afro-brasileira”, explica Deri.
“Ele não foi iniciado em nenhuma religião, não ‘fez’ a cabeça, mas sempre esteve muito interessado por isso e entendendo a importância dessas religiões na construção da sociedade brasileira a partir de um protagonismo de pessoas negras e trânsitos de África e Brasil”.
Em declaração preservada pelo Ipeafro, o próprio Abdias define essa relação espiritual-artística: uma coisa sensacional aconteceu comigo. Bloqueado pelo inglês, desenvolvi uma nova forma de comunicação. Descobri que possuía uma outra forma de linguagem dentro de mim mesmo: descobri que podia pintar; e pintando eu seria capaz de mostrar o que palavreado nenhum diria. Uma experiência difícil de explicar. O mais apropriado mesmo é dizer que os orixás baixaram e que pinto em estado de comunicação íntima com os orixás.”
O resultado dessa proposta são cores vibrantes e orixás em ação, como parte das questões do presente vivenciado por ele no exílio. Em Xangô Takes Over, o machado do orixá da Justiça se sobrepõe à bandeira americana. Nos quadros Xangô Crucificado ou o Martírio de Malcolm X e Liberdade para Huey, o intelectual une lideranças panteras negras e orixás na resistência por direitos civis.
O exílio de Abdias Nascimento também incluiu um período na Nigéria, onde lecionou na Universidade Obafemi Awolowo entre 1976 e 1977. Deri Andrade diz que, assim como as lutas por direitos civis nos Estados Unidos e a religiosidade no Brasil, Caribe e América Central, a encruzilhada que o levou ao continente africano modifica seu trabalho com toda uma nova gramática agregada pelos símbolos adinkra, que representam provérbios e sintetizam ideias. Abdias teve contato com tais símbolos em sua passagem por Gana, e a presença deles em sua produção artística se mantém daí em diante. Além dos quadros que usam a simbologia, a exposição traz também documentos que explicam seu significado.
“A pintura de Abdias não tem uma linearidade e acessa vários períodos da vida dele, tanto quando ele pinta no exílio quanto quando retorna para o Brasil. Mas, quando ele retorna, envolve-se mais com a política, torna-se deputado e depois senador, cria o Ipeafro. E a produção dele, enquanto artista, tem uma baixa. É no exílio em que ele produz mais”, explica o curador, que, apesar disso, reuniu também obras das décadas de 1980 e 1990 na exposição, que continuará na Galeria Mata de Inhotim até 6 de agosto deste ano.
Abdias Nascimento era neto de africanos escravizados e paulista de Franca, onde nasceu em 1914. Ao longo da vida, foi agraciado por títulos de doutor honoris causa no Brasil e no exterior, recebeu prêmios de órgãos nacionais e internacionais, entre eles a mais alta honraria outorgada pelo Governo do Brasil, a Ordem do Rio Branco no grau de comendador. O intelectual morreu em 2011.
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